quinta-feira, 18 de junho de 2015

Estudo do Ipea discute redução de maioridade penal e o mito da impunidade



A pesquisa foi apresentada nesta terça-feira, 16 de junho, em Brasília

A Nota Técnica O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal foi apresentada nesta terça-feira, 16 de junho, na sede do Ipea, em Brasília. De autoria das pesquisadoras da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) Enid Rocha Andrade Silva e Raissa Menezes de Oliveira, o estudo vem contribuir com as discussões que ocorrem em torno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/1993 - que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos -, e aponta o mito da impunidade aos adolescentes.

A pesquisa traz um recorte de quem são esses adolescentes que estão em conflito com a lei cumprindo pena com restrição de liberdade. Em 2013, 95% eram do sexo masculino e 60% deles tinham idade entre 16 e 18 anos. Dados de 2003 indicam que mais de 60% dos adolescentes cumprindo pena nesse ano eram negros, 51% não frequentavam a escola e 49% não trabalhavam quando cometeram o delito. 66% deles viviam em famílias consideradas extremamente pobres.

Nos últimos três anos, roubo, furto e envolvimento com o tráfico de drogas foram as infrações mais comuns praticadas pelos adolescentes. Em 2013, cerca de 40% deles respondiam pela infração de roubo, 3,4% por furto e 23,5% por tráfico. Já os delitos graves, como homicídio, correspondiam a 8,75%; latrocínio – roubo seguido de morte – 1,9%, lesão corporal 0,9% e estupro 1,1%. Entre os estados brasileiros com maior número de adolescentes privados de liberdade, em 2012, estão São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará.

Existiam um total de 23, 1 mil adolescentes privados de liberdade no Brasil, em 2013. Desses, 64% (15,2 mil) cumpriam a medida de internação, a mais severa de todas. Segundo as autoras, isso indica que a aplicação das medidas não correspondem com a gravidade dos atos cometidos.

“Para o Estatuto da Criança e do Adolescente, as medidas de internação devem respeitar os princípios da brevidade e da excepcionalidade. Quando olhamos esses dados, observamos que os princípios não são seguidos, se fossem cumpridos, os adolescentes internos seriam aqueles que cometeram infrações graves como homicídios, estupros e latrocínios, apenas 3,2 mil do total, e não 15 mil, como encontramos”, explicou a técnica de Planejamento e Pesquisa Enid Rocha.

As pesquisadoras mostraram que as medidas socioeducativas em meio aberto – Liberdade Assistida e Prestação de Serviço para a Comunidade – são possibilidades reais de ressocialização dos adolescentes em conflito com a lei, com acompanhamento de profissionais sem romper o vínculo com a comunidade. E defenderam que, para combater a violência e a criminalidade, seria necessária “a promoção dos direitos fundamentais, como o direito à vida e dos direitos sociais preconizados na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente, de educação, profissionalização, saúde, esporte, cultura, lazer, e viver em família”.

“Desde 2012, há um arcabouço institucional do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), montado para a aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto. Essas medidas existem para criar condições de reconstrução de projetos de vida, para dar acessos aos serviços de assistência social”, explicou Enid Rocha.

“O Brasil é uma país que encarcera muito, temos a quarta população carcerária do mundo e o número de presos cresceu 77% desde 2005. Esse dado desconstrói os mitos de que encarceramento vai resolver o problema da violência. Quando internamos o adolescente, misturamos jovens com diferentes níveis de envolvimento com o crime. Vamos resolver a violência com prevenção, expansão de direitos e inclusão dos adolescentes em políticas públicas”, defendeu o secretário Nacional de Juventude, Gabriel Medina.


Fonte: IPEA 

Nota da CNBB sobre a Redução da Maioridade Penal

Dom Vilsom Basso, bispo de Caxias (MA) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude, da CNBB, divulgou nesta terça-feira uma nota contra a redução da maioridade penal. No documento, ele convida “os jovens e assessores das PJs, Movimentos, Novas Comunidades, Congregações Religiosas e Responsáveis Diocesanos pela Evangelização da Juventude a refletir e se manifestar contra a redução da maioridade penal”, adotando o posicionamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Você sabia que a Igreja no Brasil é contra a redução da maioridade penal?







NOTA SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL!



“Bem-aventurados os que promovem a paz,

porque serão chamados filhos de Deus”. (Mt 5,9)



Assim diz a nota da CNBB sobre a redução da maioridade penal, datada de 16 de maio de 2013:

“O debate sobre a redução da maioridade penal, colocado em evidência mais uma vez pela comoção provocada por crimes bárbaros cometidos por adolescentes, conclama-nos a uma profunda reflexão sobre nossa responsabilidade no combate à violência, na promoção da cultura da vida e da paz e no cuidado e proteção das novas gerações de nosso país.

A delinquência juvenil é, antes de tudo, um aviso de que o Estado, a Sociedade e a Família não têm cumprido adequadamente seu dever de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente, conforme estabelece o artigo 227 da Constituição Federal. Criminalizar o adolescente com penalidades no âmbito carcerário seria maquiar a verdadeira causa do problema, desviando a atenção com respostas simplórias, inconsequentes e desastrosas para a sociedade.”



Nos dias 15 a 24 de abril de 2015, mais de 300 bispos da Igreja Católica estiveram reunidos na 53ª Assembleia Geral, em Aparecida-SP, e na Nota sobre o Momento Nacional, datada de 21 de abril de 2015, os bispos afirmam:

“A PEC 171/1993, que propõe a redução da maioridade penal para 16 anos, já aprovada pela Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça da Câmara, também é um equívoco que precisa ser desfeito.

A redução da maioridade penal não é solução para a violência que grassa no Brasil e reforça a política de encarceramento num país que já tem a quarta população carcerária do mundo. Investir em educação de qualidade e em políticas públicas para a juventude e para a família é meio eficaz para preservar os adolescentes da delinquência e da violência.”

Como membro da CNBB e um dos responsáveis pela evangelização da juventude na Igreja do Brasil, eu reafirmo as palavras dos Bispos do Brasil contra a redução da maioridade penal e convido os jovens e assessores das PJs, Movimentos, Novas Comunidades, Congregações Religiosas e Responsáveis Diocesanos pela Evangelização da Juventude a refletir e se manifestar contra a redução da maioridade penal.



Brasília, 16 de junho de 2015





Dom Vilsom Basso, SCJ

Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude – CNBB



quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sobre Dom Oscar Romero- atualizar a missão profética em nossa vida pastoral.

As contradições no reconhecimento a Dom Romero dentro e fora da Igreja


Em meio ao contexto de beatificação de Dom Óscar Romero, efetivada no último dia 23 de maio, na Arquidiocese de San Salvador, líderes sociais e religiosos divergem quanto ao reconhecimento da luta do salvadorenho durante o período de guerra civil por que passou o país, de 1980 a 1992. Enquanto uns destacam sua figura como a de um importante líder político, outros o conceituam como um mestre religioso. Em ambos os casos, a Teologia da Libertação pode ser vista como permeando o pensamento e as ações de Romero.
Dom Óscar Romero foi beatificado no último dia 23 de maio. 
Essa divisão de visões era ainda mais forte em anos anteriores, inclusive durante o pontificado de João Paulo II (1978-2005), quando havia um grupo de bispos que não estavam de acordo com uma beatificação de Monsenhor Romero. A divergência se suavizou com o tempo e, especialmente, a partir da chegada de Francisco no Vaticano. Contudo, a interpretação sobre o legado de Romero não possui consenso.
Mesmo persistindo as divergências em torno da figura de Monsenhor Romero, na celebração de beatificação do sacerdote salvadorenho não faltou a presença de representantes de várias religiões e igrejas, de diversos países, além de líderes dos mais diversos setores políticos, empresários e donos de grandes veículos de comunicação.
Para discutir a questão, a Adital entrevistou Francisco de Aquino Júnior, presbítero da diocese de Limoeiro do Norte (Ceará), doutor em Teologia pela Universidade de Münster (Alemanha) e professor de teologia na Faculdade Católica de Fortaleza e na Universidade Católica de Pernambuco. Essas contradições respondem ou correspondem a interesses sociais e eclesiais muito concretos, ainda que muitas vezes sutis. "O próprio Romero viveu na pele essas contradições na Igreja e na sociedade salvadorenhas”, destaca Aquino Júnior.

ADITAL - Podemos observar pelo menos duas dimensões que envolvem a beatificação de Monsenhor Óscar Romero: a religiosa e a política. Como explicar cada uma delas no reconhecimento do mártir pela Igreja?

Francisco de Aquino Júnior - A fé cristã diz respeito a todas as dimensões da vida humana: pessoal, social, política, econômica, cultural, religiosa etc. Por isso, um cristão não pode ficar indiferente ao que acontece no mundo. A concentração de bens, a injustiça, a violência, por exemplo, são também problemas de fé porque são uma negação da vontade de Deus neste mundo; são pecados mortais diante dos quais um cristão não pode se curvar, mas tem que lutar contra, mesmo que pague por isso com a própria vida como fez Romero.
Ele não foi assassinado por acaso nem apenas porque estava presidindo uma celebração eucarística. Foi assassinado porque, como Jesus, viveu eucaristicamente, colocou-se do lado dos pobres, defendendo suas vidas frente aos poderes econômicos e políticos de El Salvador, e apoiando suas lutas e organizações. Seu martírio tem, indiscutivelmente, uma dimensão política. Foi assassinado porque viveu evangélica e profeticamente a dimensão política da fé.

ADITAL - É possível separar esses dois aspectos na práxis de Romero em El Salvador?

FAJ - Na verdade, como dizia Romero, "a fé cristã e a ação da Igreja sempre tiveram repercussão sociopolítica. Por ação ou por omissão, pela conivência com um grupo social ou com outro, os cristãos sempre influenciaram na configuração sociopolítica do mundo em que vivem”, embora, nem sempre, de acordo com o Evangelho.
Mas, "quando a Igreja se insere no mundo sociopolítico para cooperar no surgimento de vida para os pobres, não está se distanciando de sua missão nem fazendo algo subsidiário ou supletivo, mas está dando testemunho de sua fé em Deus, está sendo instrumento do Espírito, Senhor e doador da vida”. E se isso vale de alguma forma para toda a Igreja e para todos os tempos, vale de um modo muito particular para a situação concreta de El Salvador, marcada por uma situação extrema de injustiça e violência.

ADITAL - Como o Papa Francisco tem interpretado a contribuição de Romero?

FAJ - A visão que o Papa Francisco tem de Romero está muito ligada à sua concepção e ao seu projeto de "uma Igreja pobre e para os pobres”. Romero foi o bom pastor que deu a vida por seu povo. A Igreja de São Salvador, sob o pastoreio de Romero, assumiu, radicalmente, a causa dos pobres e assim tornou-se ícone/imagem/sacramento de uma autêntica Igreja dos pobres.
Na carta que escreveu ao arcebispo de San Salvador, por ocasião da beatificação de Romero, Francisco afirma que Romero deve ser contado entre "os melhores filhos da Igreja”, fala de sua missão referindo-se à escravidão-libertação do Egito (Êxodo), a Moisés, aos profetas e a Jesus bom pastor, lembra que "seu ministério se distinguiu por uma atenção particular aos pobres e marginalizados”, dá "graças a Deus porque concedeu ao bispo mártir a capacidade de ver e ouvir o sofrimento de seu povo e foi moldando seu coração para que, em seu nome, o orientasse e o iluminasse até fazer de sua ação um exercício pleno da caridade cristã”, e diz que em Romero podemos encontrar "força e ânimo para construir o Reino de Deus, para comprometer-se por uma ordem social mais equitativa e digna”. Romero é testemunha fiel de uma Igreja profética, comprometida com os pobres e com a justiça social.

ADITAL - De que maneira a figura e o legado de Monsenhor Romero é, hoje, utilizada pela Igreja Católica?

FAJ - Depende do grupo a que você se refira. Há grupos que destacam seu compromisso com os pobres e com a justiça social, e sua luta pela transformação da sociedade. Há grupos que falam dele como homem de Igreja e de oração (o que é verdade!), mas silenciando seu compromisso com os pobres e seu conflito com os poderosos, ou falando de sua opção pelos pobres de maneira tão abstrata e genérica que não incomoda ninguém – nem fede nem cheira... Muitos grupos encontram nele inspiração, ânimo e coragem para assumir no tempo e lugar em que vivem as causas e as lutas dos pobres e oprimidos.
Mas penso que a tendência da grande maioria, especialmente de bispos e padres, é uma espécie de "cisma branco”: não vai falar contra (afinal, foi, oficialmente, declarado mártir e beato) ou até vai elogiá-lo, mas, na prática, não o leva a sério (é bonito, é admirável, mas não é pra mim; os tempos são outros...). De uma forma ou de outra, Romero continua incomodando, provocando, convocando... "Não há nada mais revolucionário que o cadáver de um mártir” (P. Casaldáliga); "O sangue dos mártires é semente de novos cristãos” (Tertuliano), sustenta a esperança e anima a resistência aos poderes opressores...

ADITAL - Como a figura e o legado de Monsenhor Romero são, hoje, utilizados em outras religiões e grupos sociais?

FAJ - Isso é muito relativo, como disse anteriormente. Para muitos crentes (de outras Igrejas e de outras religiões), Romero é um homem de Deus, uma testemunha fiel de Jesus Cristo. Nas palavras do mártir Ellacuría: "em Dom Romero Deus passou por El Salvador”, ele foi "um enviado de Deus para salvar seu povo”. Por irônico que pareça, antes que se colocasse um quadro de Romero no Vaticano, a catedral anglicana de Londres [Inglaterra] já o tinha feito desde 2000.
Para outros, que tinham/têm outros interesses e estavam/estão ligados aos grupos do poder, era um comunista ou, na melhor das hipóteses, um ingênuo que se deixou manipular pelos grupos de esquerda. Com Jesus não foi diferente: para uns, ale agia pelo dedo de Deus; para outros, agia pelo poder de Satanás... Em todo caso, seu compromisso com os pobres, com os direitos humanos, com a justiça social expressa o que de melhor, mais espiritual e mais santo as igrejas e religiões têm a oferecer a humanidade e qual deve ser o ponto de encontro ou desencontro entre as igrejas e religiões: a vida do pobre que é a glória de Deus.

ADITAL - Como o sr. avalia o atual contexto político-religioso, no que diz respeito à concretização da beatificação do mártir salvadorenho? Quais as diferenças do contexto do pontificado de João Paulo II?

FAJ - Complexo e ambíguo. Por um lado, vivemos um momento em que não se acredita muito na possibilidade de mudança radical da sociedade. Transformação é uma palavra fora de moda. Na melhor das hipóteses, podemos fazer pequenas reformas. E para os pobres, bolsas... Neste contexto, a figura de Romero não tem muita força...
Por outro lado, a seca eclesial que vivemos nos últimos 30 anos produziu uma igreja voltada pra si mesma, excessivamente devocional, sacramentalista e clerical, cada vez mais distante dos grandes problemas do mundo atual, particularmente dos pobres e marginalizados. Para essa Igreja, Romero diz pouco ou nada. Não por acaso nenhum canal de televisão transmitiu a missa de beatificação de Romero no Brasil e as poucas celebrações que aconteceram tiveram, em geral, uma participação muito pequena – as minorias abraâmicas ou gedânicas...
E, embora Francisco represente uma novidade (tem-se falado muito de uma nova primavera eclesial em referência a João XXIII e ao Vaticano II), não tem, de fato, repercutido muito na dinâmica pastoral da Igreja. "Igreja em saída” até pode ser...; para as "periferias”, nem tanto...; para lutar pela justiça social e pela transformação das estruturas da sociedade, menos ainda... A memória de Romero anima e fortalece o projeto de "uma Igreja pobre e para pobres”, particularmente, no que diz respeito ao compromisso da Igreja na luta pela justiça social, sinal por excelência do reinado de Deus neste mundo.

ADITAL - Além do setor religioso, a luta por justiça social de Óscar Romero ganhou a adesão de setores populares organizados e não organizados, assim como o rechaço de setores direitistas no interior da Igreja Católica, da oligarquia local salvadorenha, das forças armadas e do imperialismo estadunidense. Como cada um desses setores lida, hoje, com o legado do mártir?

FAJ - Uns querem que Romero continue vivo e presente nas lutas do povo e fazem isso se comprometendo, efetivamente, com as causas e lutas populares, e invocando o nome, o testemunho e a memória perigosa e subversiva de Romero: a luta continua!!! Outros querem que Romero seja sepultado, nem que seja nos altares...
E fazem isso dissociando a imagem de Romero das lutas do povo, criando uma imagem espiritualista e desencarnada de Romero – um Romero insosso, que não incomoda, que nem fede nem cheira... – ou, simplesmente, silenciando seu nome, já que não parece bem criticar alguém que foi, oficialmente, proclamado mártir, beato e, em breve, será proclamado santo... O indício mais claro disso é a situação atual da Igreja de El Salvador, particularmente, de suas instâncias de governo: "celebra” Romero, afastando-se cada vez mais das lutas do povo...

ADITAL - Há quem acredite que a beatificação é um reconhecimento a um personagem singular da Igreja, a um "mártir por amor". Já outros a interpretam como um esforço da direita religiosa global, aproveitado pela direita religiosa, midiática e política local, para "domesticar" a figura do Monsenhor, a fazendo regredir a uma segurança da tranquilidade e da ordem das instituições de poder. Como podemos enxergar essas duas visões dissonantes?

FAJ - Sem dúvida nenhuma, há um esforço para "domesticar” a imagem e a memória de Romero dentro e fora da Igreja. Como não foi definitivamente eliminado, é preciso "domesticá-lo”. Sua imagem/memória, como costuma acontecer com os profetas e mártires, é sempre uma ameaça... E se faz isso de uma maneira muito sutil: separando-o dos processos políticos e eclesiais em que estava inserido, desvinculando-o dos movimentos e lutas populares, escolhendo algumas palavras suas mais aparentemente religiosas, estimulando devoção a ele em vez de continuar sua luta hoje... Mas não é fácil "domesticar” Romero. Não é fácil afastá-lo dos pobres e das lutas por justiça social...

ADITAL - Uma terceira visão em torno do reconhecimento de Dom Romero diz respeito à oportunidade de, a partir da figura dele, realizar-se uma política de conciliação de classes, que permita melhorar a estabilidade e a imagem de El Salvador, inclusive, atraindo alguns investimentos. De que maneira isso poderia se dar?

FAJ - Esta seria uma forma de "domesticar” sua imagem. Romero sempre foi um homem do diálogo e da reconciliação, mas não a qualquer preço. Até porque não há verdadeira reconciliação fundada sobre a injustiça. A verdadeira paz, como sempre insistiu, é fruto da justiça. Sem justiça social não há paz verdadeira nem reconciliação verdadeira nem estabilidade verdadeira. Paz, reconciliação, unidade é tarefa, desafio, missão...
Seu fundamento é a justiça social. Seu critério e sua medida são as maiorias populares. E a existência de classes sociais vai ser sempre um pecado. Pobreza-riqueza é pecado porque não significa carência ou fartura de bens, mas concentração nas mãos de uns poucos e negação até das condições materiais básicas de sobrevivência às grandes maiorias. Neste sentido, a chamada "conciliação” de classes é incompatível com o evangelho do Reino que tem como critério e medida a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo.

ADITAL - Já uma quarta visão parte do próprio setor progressista da Igreja, que rejeita uma mistificação de Dom Óscar Romero, defendendo sua figura não como santificada, mas como um homem do povo. Proclamá-lo santo seria, ainda, adequar sua práxis ao que esperaria a Igreja, em seus mais altos âmbitos de poder. O que podemos discutir em torno desse olhar?

FAJ - Romero é santo e não devemos [ter] escrúpulo em reconhecer e proclamar isso. É santo porque foi fiel ao Deus de Jesus, entregando sua vida pelos pobres e oprimidos de El Salvador. Reconhecê-lo como santo nos compromete com as mesmas causas que ele assumiu porque significa reconhecer que o caminho que ele seguiu conduz a Deus e nos faz participar de mistério de santidade.
Sem dúvida, é bom e mesmo necessário falar de Romero – sua conversão, seu serviço aos pobres, seu ministério pastoral, sua firmeza e fidelidade proféticas, sua perseguição, seu sofrimento, seu martírio etc. –, recordar e reproduzir suas homílias dominicais, estampar sua imagem em camisetas e quadros e nas igrejas, cantá-lo nas celebrações etc.

Mas o que importa mesmo é atualizar sua missão profética em nossa vida e ação pastoral. Não basta reler suas homílias e cartas pastorais, é necessário reler os sinais dos nossos tempos, com o mesmo espírito evangélico com o qual Romero interpretava sua realidade e reagia ante essa mesma realidade, denunciando, com clareza e radicalidade, as atuais violações dos direitos humanos e favorecendo com todos os meios disponíveis as lutas concretas atuais, pela transformação da realidade no dinamismo do reinado do Deus de Jesus de Nazaré.


Fonte: Adital